Tem dias em que ele só aceita comer a comida se for no prato azul. Em outros, ele não quer comer. Daí ele pede para ver TV ou usar o iPad, mas bem na hora de dormir. E quando ouve “não” dos pais, começa a bater e atirar os brinquedos longe, chora desesperadamente e se joga no chão. Depois, ele reluta em entrar no banho e, quando entra, reluta em sair.
Birras e situações desse tipo se tornam rotina na vida de pais de crianças que se aproximam dos dois anos de idade, quando começa a fase apelidada de “adolescência dos bebês”.
E eis que esses pais, que estavam se acostumando a um bebê que aceitava quase tudo passivamente, se veem surpreendidos por uma criança cheia de vontades e pronta para abrir o berreiro ao ser contrariada.
A boa notícia é que isso não só é normal, mas uma parte crucial do desenvolvimento da criança. E o aprendizado que ela terá nessa idade ajudará a moldar a forma como ela lida com seus sentimentos na vida adulta.
A segunda boa notícia é que há muitas formas inteligentes de lidar com esses comportamentos, desde que os pais se armem de estratégias e de (muita!) paciência.
A BBC News Brasil conversou com quatro especialistas em comportamento infantil para aprender a importância dessa fase por volta dos 2 aos 4 anos no desenvolvimento e levantou dez dicas práticas para guiar os pais em situações do dia a dia.
O que acontece por volta dos dois anos?
“É uma fase em que a criança faz descobertas incríveis e ganha uma enorme capacidade de interação, mas as áreas de autorregulação do seu cérebro ainda não se desenvolveram”, explica Ross Thompson, professor do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Davis e presidente de conselho da organização Zero to Three, dedicada a essa faixa etária.
“O mais importante é os pais entenderem que essa criança é simplesmente incapaz de controlar suas emoções. Esse entendimento os ajudará a vê-la de modo mais construtivo, em vez de achar que ela está desafiando (sua autoridade). Não adianta achar que ela está sendo malcriada e apenas dizer-lhe ‘acalme-se’, porque seu cérebro ainda é incapaz de seguir esse comando. Cabe ao adulto ajudá-la a colocar seus sentimentos em palavras e a gerenciá-los.”
“A criança começa a perceber que não é uma extensão dos pais, mas sim uma pessoa com vontades. E a esses novos quereres soma-se uma frustração intensa, acompanhada de choros e gritos”, diz a autora e educadora parental Elisama Santos.
Essa maturação do controle emocional no cérebro perdura até os 20 e poucos anos, mas a fase mais crítica dessa “adolescência dos bebês” costuma passar por volta dos 4 anos, quando as crianças aumentam seu repertório para se expressar e entender o mundo.
Até lá, “se os pais se deixam levar pela raiva e se tornam punitivos, as situações tendem a sair do controle”, diz Claire Lerner, conselheira parental também da Zero to Three. “Se, em vez disso, eles agirem com calma, empatia e oferecerem estratégias para essa criança, ela aprenderá ferramentas para lidar com suas emoções – algo que a ajudará em toda a vida adulta.”
1. Quando a criança bate
Quando contrariadas, muitas crianças a partir de um ano e meio batem nos pais ou cuidadores. Incapazes de expressar sua frustração em palavras ou de se acalmar por conta própria, elas recorrem às reações físicas.
Como resposta, Lerner acha ineficaz o grito “pare já de bater, você está de castigo!” – a criança ficará mais nervosa e não saberá o que fazer com seus sentimentos.
Lerner sugere explicar à criança o que ela está sentindo e dar ferramentas para ela extravasar. “Sei que você está chateada, mas não comemos doce a esta hora do dia. Quando estiver triste, bata neste tambor em vez de bater nas pessoas. Ou morda este brinquedo em vez de morder a mamãe”, por exemplo.
Repetindo isso várias vezes, a tendência é que a criança comece a entender os próprios sentimentos e os recursos para administrá-los.
“Quanto mais você validar o sentimento dela, menor será a necessidade dela de reagir para demonstrá-lo”, explica Lerner.
Elisama Santos dá dicas semelhantes: ensinar a criança a bater palmas ou rugir como um leão quando precisar liberar a energia da raiva.
“Também sugiro falar em tom de curiosidade: ‘Você viu que a sua mãozinha me bateu? Você é o chefe da mãozinha, você que cuida dela’.”
2. Calma na hora da birra
Ataques de birra, sobretudo em lugares públicos, são desconcertantes. Mas Lerner lembra que não somos capazes de controlar como nossos filhos vão reagir. Somos, porém, capazes de controlar nossa própria reação. E manter a calma e o tom de voz ajuda a não elevar a tensão ainda mais.
“Isso é difícil em uma cultura que culpa os pais quando as crianças estão fazendo birra”, diz ela. “(Mas) lembre-se de que seu filho não está propositadamente tentando humilhá-lo – ele simplesmente não consegue lidar com a situação. Seu trabalho não é puni-lo, e sim ter empatia, validar suas emoções, guiá-lo e manter a calma. Deixe as pessoas pensarem o que quiserem.”
“Ajude a criança a expressar em palavras o que ela está sentindo (frustração, raiva, irritação) e ofereça colo e abraço – mesmo que ela evite, dizendo ‘a mamãe está aqui quando você quiser um abraço'”, sugere Debora Corigliano, psicopedagoga e especialista em neurociência da educação. “E permita que ela chore, garantindo que ela esteja em um espaço seguro, caso ela esteja se debatendo.”
Mudar de ambiente, olhar para o céu, dar uma volta e tirar o foco do motivo da birra muitas vezes ajuda a “desativar a bomba”. Mas vivenciar a tristeza decorrente das frustrações é parte do (difícil) processo de crescer. “O choro cura e é uma ferramenta para se acalmar”, diz Santos.
O professor Ross Thompson diz que diversos experimentos em laboratório já demonstraram a eficácia de, passada a crise de choro, ter conversas construtivas com as crianças. “É dizer a ela: ‘Você ficou muito brava quando eu tirei o seu brinquedo e você me mordeu. Vamos pensar em outras formas de agir?’. Você está dando a ela informação e orientação.”
3. Os limites necessários
Manter a calma não significa ceder aos desejos da criança, o que passaria a ela uma mensagem contraproducente: a de que “se eu fizer birra, conseguirei o que quiser”.
“Se eu ceder, não vou fortalecer o músculo da resiliência nem ensinar a criança a lidar com a frustração, algo essencial para a vida adulta”, diz Santos. “O caminho não é ser permissivo, é dizer ‘não’ quando necessário e acolher a frustração decorrente desse não.”
Para Lerner, “as crianças estão testando seu poder e suas escolhas. Se o pai não mantém o limite que definiu, o comportamento (de birra) continuará. E é preciso mesmo impor limites no tempo diante da TV ou tablets, ou em crianças que batem, porque certas coisas não são negociáveis. Se ela não quer botar o cinto de segurança, coloque-o, seja impassível e siga adiante. Ela vai perceber aos poucos que, mesmo que não colabore, o cinto será colocado de qualquer jeito”.
4. Não enxergar como manipulação
Para crianças tão pequenas e em momentos de tensão, adianta pouco perguntar “por que você bateu?” ou iniciar grandes discussões – elas são muito pequenas para entender, e a tendência é só aumentar a birra.
“As crianças são provocadoras, vão dizer: ‘te odeio’, vão te bater. Se enxergarmos isso como manipulação – quando são na verdade comportamentos típicos dessa idade -, tenderemos de reagir de forma raivosa”, diz Lerner.
“Em vez de entrar na briga, mantenha a calma, explique o que ela está sentindo e siga com a vida. A lição que você estará ensinando é a de que não vai entrar em uma discussão destrutiva.”
5. Dar chances de a criança escolher
Para prevenir longas batalhas cotidianas e evitar que a criança tome controle da rotina familiar – nas refeições, na hora de se vestir, na hora de sair -, Lerner sugere dar escolhas (aceitáveis) às crianças, que estão morrendo de vontade de exercer sua recém-descoberta autonomia.
“A dica é dar sempre duas escolhas às crianças e estabelecer limites. Por exemplo, no caso dos brinquedos espalhados pelo chão da casa: ‘Você tem duas ótimas escolhas: guardar ou não os brinquedos. Se você guardar, ótimo. Se não guardar, a mamãe ou o papai terá que gastar tempo fazendo isso, então teremos um livro a menos para ler na hora de dormir’.”
A ideia é dar consequências às escolhas das crianças, mas apropriadas à situação.
6. Em vez do ‘não’, o reforço positivo
Para Elisama Santos, as crianças dessa idade dizem “não” para (quase) tudo porque estão acostumada a ouvir muitos “nãos” dos pais – que, embora bem intencionados em proteger os filhos, podem usar uma estratégia mais eficiente: o reforço positivo.
“Não adianta falar que ela não deve pôr a mão na tomada, porque o que ela vai fixar é apenas a tomada. É melhor falar ‘a mãozinha vai no brinquedo’; ‘o desenho é no papel'”, sugere Santos.
7. Brincar mais – e escolher as batalhas
Transformar atividades cotidianas em brincadeiras ajuda a aliviar tensão nas tarefas chatas, diz a educadora parental.
“Se você usar uma voz de robô ou fizer cosquinhas para vestir ou escovar os dentes das crianças, vai levar essa fase com mais leveza e facilidade”, diz Santos.
E evite entrar em todas as (desgastantes) batalhas com as crianças. “Se não interfere no funcionamento da família e não machuca ninguém, recomendo deixar para lá – por exemplo, se o seu filho decide sair de casa com uma camiseta que não combina com a calça.”